domingo, 15 de abril de 2012

Soja: consumir ou desprezar?




O consumo de soja já esteve intimamente ligado ao conceito de saúde, longevidade e bem-estar, o que notamos através das diversas publicações que citam a população asiática, fiéis consumidores de produtos à base dessa leguminosa, como um dos povos mais saudáveis do mundo. As flavonas da soja foram comprovadamente associadas à proteção contra perda de massa óssea, à regulação da glândula tireóide e à redução dos níveis de mau-colesterol. O século XIX, dessa forma, foi marcado pela ascensão no cultivo da soja e produção dos seus derivados, não apenas como substituição à carne nas dietas veganistas - uma vez que seu perfil de aminoácidos é semelhante ao dos produtos animais - mas também no contexto do discurso da produção de saúde numa população absolutamente influenciada pela alimentação industrializada que, aos poucos, trazia riscos ao organismo.

Apesar de tudo isso, a fama das isoflavonas como estrogênios naturais levou grande parte da comunidade esportiva ao desinteresse pelo consumo dessa substância. Para alguns atletas, a ingestão de soja seria como administrar anticoncepcionais à base de estrogênio e causaria danos não apenas à aparência, mas, assim como o estrogênio sintético, ao coração, se prolongada por muitos anos.

A polêmica da ingestão da proteína de soja me parece um assunto sem fim. Se, por um lado, ela é considerada totalmente maléfica pelas características da sua atividade metabólica, vejo muitos atletas de nome consumindo esse tipo de proteína continuamente e tendo ótimos resultados físicos. Recentemente, Rodolfo Peres, um conhecido nome da nutrição esportiva, publicou em seu blog os benefícios do consumo da proteína isolada de soja, o que intrigou grande parte da comunidade esportiva, ao mesmo tempo em que alguns passaram imediatamente a acreditar na ausência de malefícios do consumo do alimento sem nenhum tipo de pesquisa prévia.

Prós e contras





Antes de qualquer coisa, é preciso definir aqui alguns malefícios comprovados do consumo da própria soja na sua forma natural. Esse alimento contém fatores antinutricionais que, no nosso organismo, se ligam a minerais impedindo sua absorção, além de um fator inibidor da tripsina, enzima responsável pela quebra protéica no processo de digestão. Este é o motivo pelo qual o consumo da soja em crianças foi tão criticado, em diversos artigos, por interferir no crescimento normal do indivíduo ao reduzir seu aproveitamento de nutrientes. Esse problema é facilmente encoberto pelo seu processamento. Isolando a proteína de soja, estaríamos eliminando quase a totalidade dos seus fatores antinutricionais, criando, então, uma proteína de perfil protéico excelente e sem maiores malefícios ao organismo, certo?

Na teoria, sim, apesar de alguns autores ainda acreditarem que processo de purificação supracitado, na prática, é duvidoso. No entanto, acredito que a proteína isolada de soja não apresenta qualquer tipo de malefício se usada em quantidade adequada. Ao contrário, ela é reduzida de gorduras e carboidratos e o que resta é uma proteína pura com alto teor de arginina, glutamina e BCAA’s, sendo que estes 5 aminoácidos compõem 36,2% do produto, o que a torna um perfeito anticatabólico e potencializador da secreção de GH e óxido nítrico. A OMS classificou essa proteína com PDCAAS (Protein Digestibility Corrected Amino Acid Score ou Facilidade de Digestão de Proteína Corrigida de Aminoácidos) igual a 1.0 (o máximo), afirmando que seu aproveitamento se compara ao do ovo ou da caseína e supera o da carne vermelha, de apenas 0.92.

Ela não é apenas um complemento excelente na alimentação do esportista, mas ainda auxilia na regulação dos hormônios tireoidianos, tão importantes no bom funcionamento do nosso metabolismo, o que certamente facilita a perda de gordura e ganho de massa muscular.

Como os artigos recentes postularam para reverter a má fama da soja e da sua proteína isolada, esses alimentos possuem inúmeros benefícios, sim. É preciso deixar claro que não apenas a soja, mas muitos outros alimentos - especialmente grãos integrais e vegetais como o espinafre - possuem fatores antinutricionais e são constantemente recomendados por médicos e nutricionistas pelo seu alto valor nutricional. O problema não está no seu consumo, mas sim na febre do consumo dessa leguminosa, que, por ser divulgada como alimento do bem, passou gradativamente a substituir ingredientes em alimentos processados, substituir o próprio leite – inclusive na alimentação infantil – e ser adicionado ilimitadamente na alimentação diária de algumas pessoas, o que se traduz em um erro grave.

Como mensurar a quantidade segura para o consumo da soja?

Para se ter uma idéia de valores, o consumo de isoflavonas recomendado por dia, pela FDA (Food and Drug Administration), para promoção de saúde, é de 24mg por dia, quantidade contida em 1 litro de leite de soja tipo Ades.

Segundo pesquisas, chineses e japoneses beneficiados pelo consumo de soja mostraram redução de doenças degenerativas – especialmente câncer de mama e próstata – consumindo de 3 a 28mg ao dia de isoflavonas, valores considerados saudáveis. Comprovou-se, nestas pesquisas, que a alimentação oriental não se baseia no consumo de soja, mas tem como fonte primária de proteína os produtos de origem animal, o que mostra que é comum, porém errôneo, superestimar a aplicação da soja na culinária desta população.

Sugere-se que o excesso no consumo de isoflavonas se dá, principalmente, pela adição de suplementos a alimentos industrializados, tais como iogurtes, substitutos de refeição, produtos de confeitarias e barras nutritivas. O grande perigo, portanto, está basicamente na soja disfarçada dos produtos de supermercados quando estes são consumidos com freqüência e, principalmente, associados à ingestão de altas quantidades de outros produtos de soja. Este é o motivo pelo qual eu não indico produtos à base de soja para grandes consumidores de produtos industrializados que, inevitavelmente, consumirão seus suplementos através destes produtos. Destaco, também, que alimentos à base de soja não devem ser consumidos de forma ilimitada. É necessário, sim, limitar o seu consumo e estar atento a não ultrapassar a ingestão de valores altos de isoflavonas.

A ingestão de 60 a 100mg de isoflavonas – duas porções de suplemento usadas para o preparo de 100g de comidas ocidentais comuns - provêm quantidade de estrogênios vegetais equivalente a uma pílula anticoncepcional, o que traria os mesmo malefícios do medicamento se consumida diariamente, em longo prazo. Alguns suplementos, ainda, oferecem a mesma quantidade de isoflavonas por cápsula, e, desta forma, os mesmos riscos do anticoncepcional oral – aumento do risco de formação de coágulos sanguíneos, levando à maior probabilidade de doença cardiovascular. O excesso de isoflavonas oferece também o risco de supressão tireoidiana e bloqueio endócrino.

A tabela abaixo ajuda o leitor a estabelecer uma comparação simples entre o consumo adequado de soja para promover longevidade e os riscos do seu excesso. Ela foi elaborada pelo Dr. Paulo Maciel, médico, escritor e cientista, com base em diversos artigos datados conforme a tabela indica (clique para ampliar).  



Ao estabelecer valores, podemos afirmar que o consumo seguro da soja não oferece nenhum malefício e, mais ainda, que ele deve ser mensurado com cuidado pelo nutricionista na prescrição dietética, levando em conta a adição de soja também em alimentos industrializados, consumidos em massa nos dias de hoje.

Pesquisas acerca do consumo de soja na alimentação do atleta ainda são escassas, mas é possível afirmar, com base na prática clínica – tomo como exemplo o nutricionista Rodolfo Peres, assim como muitos outros atletas profissionais – que o consumo de proteína de soja isolada associado a uma alimentação saudável – sem níveis altos de consumo de alimentos processados – pode oferecer todos os benefícios da soja no ganho de massa muscular sem os riscos propostos pelas isoflavonas.

Para os meus pacientes, considero seguro o nível de até 24mg de isoflavonas ao dia, oferecido apenas pela proteína isolada de soja. Esta quantidade pode ser acrescentada através da utilização de suplementos em pó em quantidade baixa antes ou depois do treinamento resistido, quando a demanda orgânica de BCAAs é maior. Alguns suplementos para a preparação de leite de soja oferecem ainda a adição de vitaminas e metionina (aminoácido limitado no perfil protéico da soja), o que aumenta a qualidade do produto, mas pode ser considerado dispensável numa dieta rica em micronutrientes e proteína de alto valor biológico.

Apesar da carência por pesquisas científicas acerca da influência da soja na composição corporal de desportistas, já se tem uma base da quantidade segura para consumo, o que nos permite utilizar essa suplementação com mais liberdade e desfrutar de seus benefícios.

Ressalto que, para pre-contest, período anterior ao campeonato de fisiculturismo, defendo a retirada completa da proteína de soja da dieta do atleta, que fica controlada nas quantidades de carboidrato e gordura e restrita na adição de substâncias como hormônios vegetais, inclusive em quantidade ínfima, o que visa à máxima qualidade e definição muscular. Neste período, a suplementação com anicatabólicos como glutamina e BCAA’s substitui tranquilamente o alimento, além de fornecer doses mais exatas destes aminoácidos na sua forma pura.

Para concluir, friso que a decisão de inserir ou não a soja no planejamento dietético fica a critério do nutricionista, havendo divergências quanto à aprovação do consumo e escolha da quantidade. Deixo aqui um pouco das minhas pesquisas, observações e aplicações, esperando, assim, esclarecer ao leitor a importância do embasamento científico e prático na escolha de um alimento e de sua quantidade ideal levando em conta, de forma muito criteriosa, objetivo e bioindividualidade.


Referências bibliográficas


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